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29 de novembro de 2021

Constituintes chilenas: uma maratona de esforços

A paridade de gênero trouxe não apenas participação política das mulheres, mas também uma nova perspectiva política
Beatriz Michell |
 Democracia Abierta

Manuela Royo corre. É difícil encontrar espaço para entrevistar a advogada de 38 anos, eleita para reescrever a Constituição chilena: depois de cinco tentativas, nos encontramos uma segunda-feira às 19h. A essa altura, ela imaginou que as audiências públicas teriam terminado. Mas não. Eram quase 20h30 quando ela deixou a sede da Convenção Constitucional, carregada de livros e relatos de organizações de mulheres, gênero-diversas e trans ecoando em sua cabeça.

Ela coordena uma comissão que leva um nome tão grande quanto seus desafios: Comissão de Direitos Humanos, Verdade Histórica e Bases para a Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição. Parte desse desafio é curar uma história republicana construída sobre massacres e ocupações de terras de povos indígenas, as feridas da ditadura e as vítimas após a eclosão social de 2019.

Desde sua instalação em 4 de julho até 28 de agosto, a Convenção Constitucional recebeu em audiência cerca de mil pessoas e organizações que vieram apresentar suas histórias, seus problemas e suas propostas. Esse foi o primeiro compromisso dos constituintes: iniciar o debate não com as suas ideias ou com as de suas organizações, mas com as da maioria popular, das pessoas que estão nas ruas desde 18 de outubro de 2019, que foram às urnas em números históricos para tornar este processo possível e que acompanham de perto esta convenção que prometeu refundar o Chile.

A noite está escura, fria e a noite parece anunciar chuva. O toque de recolher começa em uma hora e meia, quando as ruas ficam vazias e as mulheres correm mais perigo. Por isso, Manuela Royo ainda corre. “Em um dia, percorremos muitas perspectivas de feminismos e isso também influencia a forma de fazer política que nós mulheres que fazemos parte da Convenção conseguimos trazer à tona, que tem a ver com a participação de baixo para cima, de forma horizontal”, reflete enquanto iniciamos a trajeto.

Maratonas de sessões, encontros territoriais e entrevistas para dar visibilidade ao trabalho ocupam suas horas em um ritmo que ela classifica como “patriarcal e carente de cuidado”, com demandas que se replicam em todos os espaços da sociedade.

Enquanto caminha para pegar sua bicicleta para ir a casa de sua mãe, onde passa as noites durante suas sessões em Santiago, sua filha de 3 anos, Alma, começa a adormecer a mais de 700 quilômetros de distância em Araucanía, cuidada por seu pai.

“Às vezes é difícil pra mim, fico triste… mas aí eu digo: vai valer a pena. Estamos fazendo algo pelo futuro de todas as pessoas que vivem no Chile e talvez possamos até influenciar o resto do mundo”, diz Manuela. Eleita com o apoio dos Movimentos Sociais Constituintes como militante do Movimento pela Defesa da Água, da Terra e da Proteção do Meio Ambiente (Modatima), dedicou a maior parte de sua carreira à defesa jurídica dos direitos humanos através do Instituto Nacional de Direitos Humanos, da Defensoria Penal Pública ou como advogada particular defendendo a comunidade Mapuche

As mulheres têm desempenhado um papel de liderança na convenção

Enquanto caminha, carregada de livros que as pessoas que vêm expor na convenção lhe entregam, Manuela Royo reflete sobre os papéis do cuidado, a exclusão das mulheres da vida pública e da política e as jornadas duplas ou triplas que devem cumprir entre trabalho remunerado, trabalho de cuidado e trabalho doméstico. Ela acredita que essas experiências históricas de esforço se traduzem na força que têm hoje para impulsionar as transformações que querem instalar neste processo constituinte.

As mulheres têm desempenhado um papel de liderança na convenção. A paridade de gênero entro os representantes trouxe não apenas a participação política das mulheres em igualdade de condições, mas também uma perspectiva política a partir do cuidado e uma transformação das questões que se instalam. Abordagem de gênero e perspectiva feminista; plurinacional e intercultural; incidencia de participação popular; preminência dos direitos humanos; abordagem do cuidado; proteção ambiental e a descentralização são alguns dos princípios que não se refletiram apenas no debate cotidiano, mas também nas propostas que as comissões sistematizaram com participação popular.

“Uma árvore que tem raízes tem que crescer de baixo, firme no chão, ser regada com água, ter sol, ar. É isso que queremos: trazer vida, trazer as ruas, trazer as cidades, dar realidade a esse processo. Essas comissões nos falam de aspectos estruturais que devem estar nesta constituição, de marcos com relação aos quais funcionar. Como vamos falar de economia se não considerarmos a natureza? Como vamos falar sobre as Forças Armadas se não pensarmos em direitos humanos?”, Diz Manuela.

A arquitetura da Convenção

Antes de começar a redigir a nova constituição – o que deveria começar em meados de setembro –, os constituintes trabalharam esses meses para montar a arquitetura da convenção: desenvolver seus regulamentos, códigos éticos, diretrizes e bases.

Loreto Vallejos coordena a Comissão de Comunicações, uma das oito comissões provisórias da convenção. Como professora de história e feminista, acredita que esse caminho de transversalização de certos princípios nos permitirá avançar com mais profundidade nas questões substantivas: “Por exemplo, falar sobre educação não sexista sem essa discussão prévia seria muito mais difícil, mas se a abordagem gênero já está instalada, ninguém vai perguntar ‘de onde veio isso?’”.

Em uma pequena pausa entre as sessões, Loreto – representante independente de esquerda eleita pela Lista do Povo – senta-se no gramado do antigo Congresso, onde opera a convenção, para conversar com a mais dura representante da direita: Teresa Marinovic. Em tom amigável, ambas se despedem após concordarem em trabalharem juntas sobre a transparência do processo.

Ações como essa deram a Loreto a reputação de “dialogante”. Através do feminismo, ela busca se relacionar com um prisma humano, sem questionar seus conceitos fundamentais e valorizando os pequenos espaços de acordo para promover mudanças.

Todas as inovações vistas nos dois primeiros meses da Convenção foras lideradas por constituintes mulheres

Loreto é vista como um “feijão na panela” – um ingrediente que não está na receita – porque, ao contrário de muitos constituintes, ela não é filiada a partidos ou organizações sociais. Nos últimos dez anos, ela se dedicou a criar seus três filhos e dar aula em uma pequena cidade em Olivar, na região central do Chile. Ela e seu marido se identificam como “classe média”, classe a que pertencem mais de 42% das famílias chilenas que vivem sobre a linha: em caso de eventualidade, voltam à pobreza.

Seu despertar político ocorreu em 18 de outubro de 2019, quando saiu com sua família para bater panelas durante o surto social. “O Chile acordou… acordou e juntos nos impulsionamos, paramos de nos sentir sozinhos, nos reconhecemos na rua, nos olhamos com confiança, nos demos esperança”.

“Adoro este processo. Estou convencida de que é o melhor que podemos fazer. É agora ou nunca”.

Loreto se candidatou à convenção e foi a mais votada em seu distrito eleitoral com mais de 15 mil votos. Hoje, ela faz parte dos 20 professores que compõem a convenção, ao lado de 59 advogados, 5 jornalistas, 9 engenheiros, 1 machi (curandeiro tradicional), 5 lideranças sociais, entre outros ofícios e profissões. A maioria dos constituintes vem de movimentos ou organizações sociais, apenas 15 ocuparam cargos políticos e nem todos são profissionais.

Uma convenção verdadeiramente plural

Ao contrário de Loreto Vallejos, Giovanna Roa, de 34 anos, tem uma longa história de militância. Designer, foi líder estudantil, co-criou Ruidosas, plataforma de indústria criativa feminista, e foi coordenadora geral da campanha de Beatriz Sánchez para a presidência do Chile em 2017. “Quando se viu na política pessoas tão diferentes, com conhecimentos provenientes de outros lugares? Essa pluralidade é transformadora em si”, opina.

Giovanna sempre se considerou uma pessoa de diálogo, mas desde que entrou na convenção ampliou ainda mais sua visão de outras matrizes culturais e formas de atuação na política. Para enterrar o autoritarismo da Constituição de Pinochet, estão tentando trazer para o debate os mais marginalizados da sociedade, diz.

Por isso, decidiram abrir sessões em prisões com pessoas privadas de liberdade, as mesmas que não estão autorizadas a votar em nenhuma eleição, e receberam representantes do povo Selk’nam, povo originário do extremo sul do Chile e da Argentina, mas que não está entre os nove povos indígenas reconhecidos pelo Estado chileno, que os considera extintos. Dessa forma, foi o único povo originário a não poder concorrer a uma das vagas reservadas para representantes indígenas.

“Nossos filhos continuam a ouvir nas escolas que estamos mortos e hoje estou aqui confiando que cada um de vocês, independentemente das cores políticas, saberá fazer justiça e reconhecer o que o Estado sancionou contra um de seus povos originários”, concluiu José Luis Chogue, representante do povo Selk’nam, entre lágrimas e aplausos.

A perspectiva de gênero na convenção vai além das diretrizes feministas – é uma forma totalmente nova de entender a natureza, o Estado e seu desenvolvimento

Todas as inovações vistas nos dois primeiros meses da Convenção – a eleição de uma mulher Mapuche para a presidência, o uso de línguas nativas dentro do prédio onde o Congresso funcionava até o golpe de 1973, diálogo estreito com a sociedade civil sem excluir os privados de liberdade – foras lideradas por constituintes mulheres. Isso mostra, argumenta Giovanna, que a perspectiva de gênero na convenção vai além das diretrizes feministas – é uma forma totalmente nova de entender a natureza, o Estado e seu desenvolvimento. “Tirar o poder que está nas mãos de poucos e distribuí-lo entre muitos”, diz.

Loreto Vallejos pensa na grande herança que as mulheres da convenção podem deixar para o futuro. “Não é apenas o resultado final, mas a forma de trabalhar as questões políticas, incluindo um olhar que foca no cuidar das pessoas e no cuidar da natureza”. Ambas acreditam que esse processo é profundamente transformador. “Até eu sou uma pessoa diferente daquela em que chegou aqui há quase dois meses”, diz Giovanna.


Esta reportagem pertence à série Cartas Chilenas, produto da aliança editorial entre #NuestrasCartas e o democraciaAbierta/openDemocracy.

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